Nos dias de hoje, é quase impossível pensar numa vida sem acesso à internet ou sem telefones móveis. No entanto, não é preciso ir muito longe dos grandes centros urbanos para constatar que o acesso às conexões de banda larga é privilégio de poucas cidades. Uma pesquisa recente intitulada Mapa da Inclusão Digital, revela que apenas 21,79% dos lares possuem internet no país. Em relação à conexão à internet, a média brasileira é de 14,74%.
Programas de inclusão digital como o Telecentros.BR e o Telecentros Comunitários, ambos do Governo Federal, têm por finalidade a criação e manutenção de telecentros nas comunidades e cidades onde o acesso às tecnologias é mais escasso. A transformação de vidas e da realidade das comunidades em função do acesso a esses novos meios de comunicação é uma realidade nas diversas comunidades onde os telecentros já foram implantados. Mas ainda são muitos os desafios para promover uma efetiva inclusão digital, como a manutenção destes telecentros em pleno funcionamento e também a melhoria da conexão com a chegada da banda larga.
Nesta entrevista, a coordenadora pedagógica da ONG Programando o Futuro, Silvana Lemos, que atua na coordenação de projetos de inclusão digital desde 2002, fala sobre os benefícios promovidos pela implantação de telecentros comunitários e as dificuldades encontradas no meio do caminho.
Mobilizadores Coep – O que é inclusão digital e que aspectos devem ser considerados ao se implantar uma iniciativa com este objetivo?
R.: Eu trabalho com inclusão digital, desde 2002, quando coordenei o Projeto Cyberela que capacitava mulheres comunicadoras no uso da internet, edição digital de áudio, compartilhamento de produção de conteúdo e implantação da Rádio Fala Mulher online. Há 10 anos, eram muitos os desafios para se conseguir infraestrutura como computadores, softwares, conexão à banda larga. Muitas das comunicadoras selecionadas pelo projeto, principalmente as do interior do Norte e Nordeste do país que nunca tinham visto um computador, saíram maravilhadas com o fato de não dependerem dos sonoplastas [profissionais que reconstituem artificialmente os efeitos sonoros que acompanham uma ação] nas suas produções radiofônicas, pois elas mesmas podiam editar e compartilhar seus programas. Mesmo tendo articulado, no Ministério das Comunicações, as conexões pelo Programa Gesac*1 para estas organizações comunitárias, nos deparamos com a baixa qualidade da velocidade da internet, o que impedia a transmissão ao vivo do programa de rádio para toda a Rede de Mulheres Comunicadoras. A saída foi separar os arquivos das entrevistas em podcast*2 e disponibilizar no site da rádio para que pudessem ser veiculadas. Assim, também incentivamos as produções locais e o intercâmbio de conteúdos. Ao levar a conexão de banda larga para estas organizações de mulheres, observamos que este serviço poderia ser estendido às comunidades através da implantação de telecentros comunitários – foi quando criamos a tecnologia social rádio-telecentro. Uma combinação perfeita de empoderamento da comunidade através do acesso à informação global e local.
Acredito que, hoje, o que precisamos considerar ao implantar um projeto de inclusão digital é a necessidade de continuar lutando pelo direito a uma banda larga gratuita e de qualidade; nos apropriarmos do uso de software livre, para não sermos mais reféns de uma única empresa; incentivar as comunidades e grupos organizados a produzirem seus próprios conteúdos e capacitá-los para o exercício da cidadania através da rede; fazer destes espaços locais de aprendizagem e de oferta de serviços; e garantir o acesso à informação como um direito.
Mobilizadores Coep – Quais as principais dificuldades encontradas para implantação de iniciativas de inclusão digital? Como elas têm sido contornadas?
R.: Sem sombra de dúvida, a baixa velocidade da banda larga e a não gratuidade são as maiores dificuldades para implantação de projetos de inclusão digital. Outro ponto nevrálgico é a capacitação dos agentes de inclusão digital, em sua maioria jovens que se apropriam muito rapidamente das ferramentas, mas ainda não têm uma visão da importância de ter acesso à informação, de promover esta apropriação em suas comunidades, de produzir seu próprio conteúdo, e do poder mobilizador das redes.
Vários coletivos têm se mobilizado na luta pelo acesso à banda larga gratuita e de qualidade, mas o que temos visto é pouca resposta do Governo Federal e uma pressão enorme das empresas de telecomunicações, que não querem abrir mão de suas fatias de mercado e nem cumprir com suas obrigações legais de fornecimento de serviços. Outro ponto crucial, é que, neste momento, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei do Marco Civil da Internet*3. Há vários retrocessos, como cerceamento à liberdade de expressão na rede, que podem ser aprovados nesta lei, se nós, sociedade civil, não pressionarmos para que sejam vetados.
Mobilizadores Coep – Quais os benefícios para as pessoas e comunidades envolvidas quando falamos em inclusão digital? Quais potencialidades/ habilidades ela é capaz de desenvolver?
R.: A inclusão digital é o direito de todo cidadão brasileiro de fazer parte da sociedade da informação. Em muitas comunidades distantes de grandes centros, seja na periferia das cidades ou na área rural, a inclusão digital tem encurtado distâncias na utilização de serviços públicos, permitido o acesso à informação, e sido uma oportunidade para as pessoas se colocarem, se manifestarem, se comunicarem, e, o mais importante, possibilitado o compartilhamento de conhecimento e a construção em conjunto. O computador é apenas uma ferramenta. Saber manuseá-lo, assim como a utilização de softwares livres, abre um universo novo para acesso ao conhecimento. Precisamos ficar atentos, pois há uma nova forma de nos comunicarmos e os jovens têm se apropriado das tecnologias com muita facilidade. Noventa e seis por cento dos brasileiros têm pelo menos um aparelho celular e esta mobilidade precisa ser incorporada em todos os processos, principalmente na educação.
Mobilizadores Coep – Quem são os maiores beneficiários dos programas de inclusão digital? Além do acesso gratuito à internet, quais outras atividades podem ser estimuladas?
R.: Os maiores beneficiados são as comunidades, as pessoas que ainda não têm recursos próprios para adquirir os computadores. Os telecentros podem ser usados para os agricultores terem acesso aos bancos e a créditos, tirarem certidões públicas online, etc. Estes espaços podem ser utilizados para empoderar grupos de produção, como o de artesãs – por meio do estímulo para que criem seu site para divulgação e comercialização de produtos; organizar as produções de empreendimentos de agricultores familiares; estimular alunos da creche da comunidade no desenvolvimento da coordenação motora utilizando programas de desenhos; oferecer capacitações de aperfeiçoamento a grupos organizados; estimular a produção de conteúdos locais; estabelecer redes de interesses afins; mobilizar em causas nacionais e locais pelas redes sociais.
Mobilizadores Coep – Em geral, os principais usuários dos telecentros são os jovens. Tem sido promovidas ações para atrair pessoas de outras faixas etárias?
R.: Esta é uma tendência natural porque os jovens têm menos medo do novo, não se importam em errar e, com isto, vão “fuçando” até aprender a realizar as tarefas que querem – são os chamados nativos digitais. Mas em muitas comunidades há outros públicos que querem se apropriar ou são incentivados a isso, como os idosos, que têm a perspectiva de uma ocupação, de conhecer outras pessoas, resgatar amigos, fazer cursos de seu interesse. Mas o que percebo é que os telecentros têm dado aos jovens de comunidades de baixo Índice de Desenvolvimento Humano a oportunidade de continuarem os estudos através da propagação de cursos à distância. E este é um investimento que os governantes precisam fazer num país de dimensões continentais e desigualdades como o nosso, pois uma massa de jovens têm concluído o Ensino Médio e, por falta de renda, oportunidades e condições, ficam sem perspectivas de uma formação universitária ou técnica.
Mobilizadores Coep – De que forma os programas de inclusão digital podem ajudar a promover o desenvolvimento das comunidades envolvidas? O acesso às novas tecnologias pode mudar a realidade de uma comunidade? De que forma?
R.: Em junho deste ano, estive visitando um telecentro na comunidade quilombola Kalunga do Engenho II, que fica a 27 km da cidade de Cavalcante (GO), onde o transporte público só passa uma vez por semana e o correio não chega. Encravada na Chapada dos Veadeiros, 500 pessoas remanescentes de escravos usam o telecentro para estudo, entretenimento e, principalmente, se comunicar e ter acesso a serviços. Durante a visita, encontrei um técnico da Emater que estava utilizando o telecentro para cadastrar as famílias produtoras no Programa de Agricultura Familiar do governo federal. Se não tivesse o telecentro, estas famílias teriam que se deslocar até a cidade para fazer isto, retardando ainda mais a possibilidade de geração de renda e de melhorias para a comunidade. O gestor do telecentro está construindo, junto com os jovens, uma biblioteca Kalunga para resgatar e manter a cultura tradicional.
Mobilizadores Coep – As comunidades costumam participar da gestão dos telecentros? De que forma?
R.: Nós que implementamos telecentros em todo país, temos a certeza de que quando a comunidade participa, ela se apropria, define prioridades, faz uso do espaço, possibilita a ampliação dos serviços. A maioria dos projetos públicos de inclusão digital tem como premissa a implantação de conselhos gestores nos telecentros. Mas, isto tem sido pouco implementado porque ainda temos a cultura de que alguém manda, alguém é o dono. Em contrapartida, temos iniciativas de gestão compartilhada que envolvem todos os poderes locais e dão ao cidadão o direito de participação social plena.
Mobilizadores Coep – O que está faltando no país para que a promoção da inclusão seja mais eficaz?
R.: Precisamos de implantação de políticas públicas que garantam ao cidadão brasileiro o acesso à informação. Hoje, o problema não é mais ter computador, a questão é ter uma banda larga gratuita e de qualidade que permita a todas e todos fazerem uso da rede e trocar informação e conhecimento. Não ter acesso a estes benefícios é aumentar ainda mais a exclusão social. As organizações sociais que trabalham com inclusão digital conquistaram com o governo Lula a implantação de uma política pública de inclusão digital – o Programa Telecentros.BR -,que tem o objetivo de garantir infraestrutura para os telecentros e formação para os agentes de inclusão digital. Mas, apesar da conquista do programa e da criação da Secretaria de Inclusão Digital já no governo atual, o Programa Telecentros.BR tem sido sucateado e a formação será descontinuada em dezembro de 2012. Sem contar que as organizações sociais não têm conseguido um diálogo com a Secretaria de Inclusão Digital, que privilegia os editais com as universidades. A sociedade civil, que sempre debateu e construiu junto com o governo federal o estabelecimento de políticas públicas, está alijada do processo. E, é por isso, que pela primeira vez as organizações sociais que atuam com inclusão digital no país se uniram para organizar a 11ª Oficina de Inclusão Digital e Participação Social, que acontecerá de 27 à 29 de novembro de 2012, em Porto Alegre. Este, sem sombra de dúvida, será um marco, uma oportunidade única de debatermos o futuro da inclusão digital do país e de juntarmos nossas reivindicações e propostas para pressionarmos o governo a implementar uma política pública que garanta o direito ao acesso à informação.
Mobilizadores Coep – Qual o trabalho que a ONG Programando o Futuro desenvolve com relação à inclusão digital?
R.: A Programando o Futuro é uma Organização Não Governamental que atua com o objetivo de fortalecer as iniciativas da sociedade civil por meio do incentivo ao uso apropriado das tecnologias da informação e comunicação. Os projetos da Programando o Futuro estão focados em três eixos: inclusão digital para o desenvolvimento local, qualificação para o mundo do trabalho, e fortalecimento das redes e tecnologias de apoio à sociedade civil.
A Programando o Futuro é responsável pelo desenvolvimento da tecnologia social “Estação de Metarreciclagem”, na cidade de Samambaia, no Distrito Federal, em parceria com a Fundação Banco do Brasil. A Estação seleciona jovens das comunidades do entorno para serem capacitados, gratuitamente, nas oficinas de manutenção de computadores e eletrônica de reparos. Eles recondicionam computadores que são doados para telecentros, bibliotecas e escolas. O material não aproveitado é triado no laboratório de lixo eletrônico e vendido, gerando recursos para sustentabilidade do projeto. A Estação tem capacidade operacional de recondicionamento de 4 mil computadores por ano, de capacitar profissionalmente mil jovens e de ofertar estágio para até 100 alunos, anualmente. A produção anual da Estação de Metarreciclagem é capaz de garantir a implementação e/ou atualização de 400 laboratórios de informática e telecentros.
A ONG elabora o material didático utilizado nas Estações Digitais e nos telecentros implantados pela Fundação Banco do Brasil. Também é responsável pela capacitação presencial e à distância dos educadores sociais que irão atuar nestes espaços de inclusão digital. Essas capacitações têm como objetivo ensinar aos educadores sociais como envolver a comunidade onde estão situadas as Estações Digitais nas atividades, incentivando a apropriação tecnológica por meio do desenvolvimento de projetos comunitários; preparar o projeto pedagógico para ministrar aulas de informática e noções sobre tecnologias sociais, cultura digital, software livre, educação financeira, entre outros temas.
A Programando mantém uma Central de Atendimento das Estações Digitais, onde têm quatro técnicos para orientar e capacitar à distância os gestores e monitores das Estações de todo país. Além do atendimento por telefone, a Central presta atendimento por e-mail, Messenger, Skype e redes sociais (Facebook, Orkut e Twitter).
Desenvolveu o Modelo de Inclusão Digital para Empreendedores Produtivos (MIDEP), em Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Maranhão e Bahia. O MIDEP é uma tecnologia social que tem como objetivo garantir a sustentabilidade dos empreendimentos produtivos por meio do ensino do uso das ferramentas tecnológicas, ou seja, mostrar que a tecnologia é uma aliada para os empreendedores terem um melhor aproveitamento de seus negócios.
A Programando o Futuro é o Polo Centro-Oeste da Rede Nacional de Formação para Inclusão Digital do Programa Telecentros.BR que desenvolveu uma metodologia de aprendizagem em rede, junto com quatro universidades (Universidade Federal do Pará, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade de São Paulo e Universidade Estadual da Bahia) e mais três organizações da sociedade civil: Instituto Idear, Coletivo Digital e Rede Marista do Rio Grande do Sul.
O Programa Telecentros.BR tem produzido conteúdos para a plataforma de ensino à distância tais como “telecentros”, “participação comunitária”, “cultura digital”, “acessibilidade digital”, “comunicação comunitária”, “redes”, “inclusão digital”, com um design instrucional atrativo, objetivo e intuitivo, desenvolvido no Ambiente Virtual de Aprendizagem Moodle. Este trabalho tem sido realizado em conjunto e em colaboração com os demais polos, fazendo da sua práxis a metodologia proposta para capacitação dos monitores à distância. O curso, de 480 horas, foi viabilizado por meio de debates em encontros presenciais, em listas de discussões na internet e no trabalho de edição coletiva de livros colaborativos, reuniões via Skype, pelo Gtalk, Googledocs, Slideshare, entre outros.
Sua metodologia prevê conversas dentro e fora do ambiente, com foco especial nas redes sociais. O Polo Centro-Oeste tem acompanhado o desempenho de seus alunos promovendo chats, fóruns, encontros presenciais, telefonemas para debater com eles temas elencados pelo próprio grupo e afins aos projetos comunitários que estão sendo desenvolvidos.